segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Herança

Nunca vi meu pai de camisa esporte. E quando ele morreu, minha mãe fiou olhando para mim. Eu tinha só 17 anos. Meu pai não falava nunca. E minha mãe me olhando, esperando, querendo que eu respondesse:
- O que é que ele diria no seu lugar?
Como é que eu ia saber? Ora, o meu lugar, qual era? Minha irmã começando a sair, namorar, e a minha mãe me perguntando:
- Você acha que deve?
E eu com isso! Depois a história da casa, vende não vende. E a loja, abre não abre. Minha mãe sempre indecisa:
- O que é que eu faço?
Meu pai tinha sido um homem severo, quieto, de poucos amigos. Ia de ônibus para o trabalho, representações. Ia e vinha. Sem fazer onda, a vida inteira. E de repente morrendo, foi coração, e deixando tudo arrumado. Ninguém tinha percebido. Nem minha mãe:
- Eu não sabia o que era preocupação.
E não era obrigada a saber. Mas se arreliava, suspirando. Eu que sempre odiei suspiro ficava ali, ouvindo, com sono. A troco de que? Ela suspirava por medo, atrapalhação, falta de jeito. Principalmente com dinheiro. Ou de sozinha, ou de desamparo. Porque eu não era apoio nem companhia.
- Será que eu preciso vender a casa?
Isso era comigo separado, minha irmã por longe. Pra que afligir a menina? Eu entendia, mas não respondia logo. Falava depois, aos poucos, e assim mesmo pela metade. Quase perdi o ano.
- E a loja, não é boa idéia?
Artigos infantis, roupinha de neném, tudo para criança. No estilo de boutique. Rua Augusta. Uma das primeiras a aparecer. Era boa idéia sim, devia ser bom negócio. Mas como garantir, assim de repente?
[...]
- O seu dever é me orientar.
Que história é essa de dever, eu me perguntava, quase estourando. Sempre evitei dar palpites, fazer boa ação, negócio de escoteiro.
- Se seu pai fosse vivo...
Aí as comparações. E no meio delas a surpresa de ver minha mãe me acusando: você sempre teve problema com seu pai. Que história é essa?
[...]
Vendeu-se a casa por bom preço. Deixamos Vila Mariana e viemos para o Jardim Paulista, o apartamento em três anos para pagar. Com o dinheiro que sobrou comprou-se a loja, como já disse na Augusta. A renda que meu pai deixara ficou maior.
Enquanto isso eu terminei o estudo e passei a trabalhar. De corretor, que estava dando muito, com um amigo que já vendera loteamento, palacetes.
[...]
A loja firmou-se, cresceu, minha mãe alegrou-se de novo. Meus negócios também aumentaram. Descobri que podia falar, e falar fácil, quando o assunto não era meu, pessoal, ou apenas envolvia dinheiro.
[...]
Dinheiro ajuda muito, chega a melhorar as pessoas, e isso acontece até com os parentes. As perguntas de minha mãe voltaram, mas ela decidia antes, e perguntava só de comparação.
- Devo aceitar?
Eu que não entendo de roupas fiquei um instante pensando, seria vantagem ou não, e ela rindo:
- Já aceitei. Se fosse esperar sua opinião fechava a loja. Você é igualzinho a seu pai.

Ricardo Ramos


Atividade
01- Como já sabemos o conto é uma narrativa e sendo um texto narrado ele apresenta um narrador, neste tipo de texto o narrador pode participar da história quando é chamado de narrador-personagem e está na primeira pessoa, ou apenas observar e narrar os fatos sem participar dos fatos contados, neste caso ele se chama narrador observador e está em terceira pessoa, sendo assim identifique o narrador do conto acima e diga a qual tipo ele pertence.

02 - Sabemos que no conto existem poucas personagens e que elas nunca são analisadas profundamente, ou seja o autor nunca se aprofunda nas características das personagens, nem das principais, tampouco das secundárias, sendo assim indique as personagens do conto Herança.

03- Embora o autor do conto não se dedique a descrever as personagens, ele deixa pista ao longo do texto a respeito de cada uma delas, que características você consegue identificar nas personagens? cite-as.

04- Sabemos que em um conto o autor em alguns caso não especifíca, ou não enfatiza muito os fatores como espaço e tempo, neste conto o autor os define? Por que isso acontece?

05 - Aprendemos que um conto Geralmente apresenta final surpreendente, neste caso, qual fato torna este conto surpreendente?

06- Qual o assunto principal do conto?